São os caminhos de ferro que
hão-de unir os povos e que hão-de levar os benefícios da civilização a todos os
pontos do globo. (...) O espectáculo magnifico de uma linha de caminho de ferro
(...) exalta a imaginação (...) e cria entusiasmo no individuo mais indiferente
e apático. As impressões são ainda mais vivas, aproximam-se do êxtase quando
viajamos nos railways. (...) O movimento é insensível durante rápidos
instantes, mas bem depressa se acelera (...) antes de pouco o movimento é
rapidíssimo: os objectos próximos, as casas, as árvores nos fogem (...)
julgamos animados os objectos que nos ficam para os lados. (...) É
extraordinário! (O Atheneu, edições
1-65, pág.11, 1850). A chegada do comboio revolucionou a vida das populações.
Com um misto de medo e de fascínio foi integrado no quotidiano dos povos e
tornou a distância mais curta. Miguel Torga chamou-lhe um navio de penedos a
navegar num mar de mosto. Um meio de transporte que ainda hoje é escolhido por
milhões de pessoas em todo o mundo. É quase axiomático que mesmo os piores
comboios te levam através de lugares mágicos (Paul Theroux).
No Alto Alentejo magia dos
comboios de passageiros foi interrompida em 01 de janeiro de 2012, numa medida
economicista, alugando a empresa (CP), falta de passageiros e baixa
rentabilidade, ignorando que foi a própria CP que ao longo de anos degradou o
serviço, com horários impossíveis e falta de qualidade contribuindo para interrupção
do serviço ferroviário na Linha do Leste até Badajoz, deixando ao abandono
dezenas de estações e as populações desta região ainda mais isoladas.
Recentemente o serviço de
passageiros nesta linha foi retomado parcialmente a partir de 25 de Setembro de
2015, por um período de 6 meses, às sextas-feiras e domingos, entre
Entroncamento e Portalegre.
Foi esta magia que um destes dias
de outono, numa manhã em que o nevoeiro pintava de branco a cidade do Porto, me
decidiu a redescobrir o comboio, entrei no metro em Vila Nova de Gaia, depois
de uma visita ao Monte da Virgem com a melhor vista da cidade do Porto, para ir
até à Estação de Campanhã, ali junto ao Estádio do Dragão, local onde
aguardáramos pacientemente na fila a compra do respectivo bilhete, chegada a
nossa vez, ao solicitar um bilhete para Portalegre, constatei a cara de
surpresa do funcionário que disse “já nem me lembro há quantos anos não vendia
um bilhete para Portalegre”.
De bilhete na mão ainda deu tempo
para um café ali pela praça de Campanhã, e aferir da simpatia das gentes do
Porto, com um Delta a 55 cêntimos e a oferta de bolinho regional.
Há hora marcada 10h52, depois de
subir à carruagem 23 e ocupar o lugar 42, iniciou-se viagem e para traz foram ficando
paisagens e estações como Espinho, Aveiro, Coimbra, Alfarelos, Pombal para às
13h25, chegar ao Entroncamento e fazer transbordo para a Linha do Leste.
Do Entroncamento a Portalegre, a
viagem decorreu amena com paisagens bonitas com o Tejo como cenário a alindar localidades
como Barquinha, Almourol e Abrantes ou a percorrer vastos montados de sobro e
azinho.
Já o comboio rolava sobre carris
alentejanos, quando entre estudantes e militares surgiu um passageiro singular,
um desses peregrinos do século XXI, de longas barbas brancas que de olhar
distante viajava com o seu cajado, umas quantas mochilas e uma misteriosa caixa
de papelão onde transportava uma pequena cadela, que em toda a viagem optou
pela total descrição, possivelmente habituada a estas andanças.
Na amistosa conversa que
mantivemos confessou que por voltas que a vida dá e quase sem se aperceber
acabou sendo mais um sem-abrigo, a viver por ai com o pouco que a generosidade
alheia lhe vai dando para sobreviver. Referiu que nasceu na terra do melão
“Almeirim”, lugar onde em menino teve o que chamou de vida boa, amável e com
cultura acima da média, acedeu a fazer umas quantas fotografias, e aproveitou
para manifestou o seu desagrado pelos comboios terem deixado de chegar a Elvas
e Badajoz, cidades que referiu serem locais onde já foi feliz, mas como o
comboio não chega lá teve que ficar por Portalegre – “Sabe isto de viajar de
autocarro com a casa às costas não é fácil, e depois para ir a pé na minha
idade já me faltam pernas para andar”.
Pouco passava das 15h10, com o
sol a dourar um rebanho de ovelhas que pastava junto á estação de Portalegre,
quando chegamos ao destino, a azáfama no cais fazia lembrar tempos de outrora,
com gente a correr para apanhar o autocarro da Câmara para Portalegre ou
familiares que de carro ali aguardavam passageiros que vivem em localidades
mais a sul como Arronches ou Monforte.
Quanto ao nosso fugaz amigo peregrino
ou sem-abrigo por obrigação ou devoção, vá-se lá saber, lá rumou com as suas
coisas entre as quais a cadela na caixa de papelão, à cidade que um dia um
poeta de Vila do Conde, de nome José Régio, soube retractar como poucos nos
seus admiráveis poemas:
TOADA DE PORTALEGRE
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos,
oliveiras e sobreiros
Morei numa casa velha,
À qual quis como se fora
Feita para eu Morar nela...
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva,
obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- Quis-lhe bem como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como as do meu aconchego.
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada….....
Fotos: E. Moitas
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